terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Enigma da Maçã

O céu estendia-se num espreguiçar colorido por cima do telhado castanho dourado de Buganvília. O lusco-fusco aproximava-se sorrateiramente por entre as diáfanas nuvens que migravam para oeste.

A casa de Buganvília estava bem acompanhada de árvores várias, baixas e frondosas, que num agradável amplexo proporcionavam um toque macio de verde refrescante, por entre os quais os raios de sol, sorridentes e mornos, ondulavam desde a aurora ao entardecer.

Ao tempo desta parca descrição já o lusco-fusco se fazia sentir por toda a parte de baixo da casa, quase alcançando as janelas. Era um costume de há anos o lusco-fusco aproximar-se por debaixo da casa e lentamente começar a subir até atingir as janelas do primeiro andar e num repente como que num solavanco abocanhar completamente as varandas do andar superior, onde Buganvília preparava o seu banho perfumado com pequenas flores azuis de jasmim. Buganvília apreciava banhar-se ao entardecer. Abandonava o corpo sedoso nas fragâncias espumosas e deixava-se embalar pelo sussurro do vento lá fora, numa agradável e doce melodia.

Naquele dia aquele banho estava particularmente agradável, tão agradável que Buganvília se deixou adormecer.

Buganvília adormeceu, leve e sedosa, num sussurro, embalada pelas águas cálidas daquele banho perfumado. 

(...)

Buganvíiiliaaa, Buganvíiiliaa espera. Era Carlos. Buganvília ria e continuava a pedalar, alegremente, ao sabor do vento como um barco à vela, pedalava e ria. Carlos corria atrás dela, e ela, diminuindo lentamente a velocidade, deixou-se apanhar. Riam os dois. Rebolaram pela clareira quase até junto ao rio. Detiveram-se exaustos por debaixo da cameleira, riam como crianças, livres. O chão ao lado deles estava atapetado  de maçãs, verdes, frescas, perfumadas, desejosas de serem saboreadas por bocas quentes, apaixonadas. Carlos deitou-se para trás. Fingindo que observava o céu meteu-se por uma deambulação adentro sobre a famosa dentada que Adão dera na maçã. Toda a vila falava sobre isso. Tinha sido a Eva que lha dera, já não era segredo para ninguém. Não se falava noutra coisa e até Carlos e Buganvília estavam interessados nas últimas sobre aquele acontecimento que tanto perturbara as vidas pacatas dos moradores de Vila Paraíso.

Adão ficara branco como a neve, uma indisposição terrível. Dizia-se até que Eva o podia ter envenenado. Mas para quê? Não eram eles um casal tão dedicado? Toda a gente sabia que mais dia menos dia aquilo dava em casamento. Bastava que ambas as familias estivessem de acordo quanto aos dotes. Mas depois do sucedido o pai de Adão, que tinha a mania que era deus lá no sítio, proibira-o de ver Eva e até pusera dois gaiatos à entrada da casa para manter Adão bem quieto no seu interior. Os rapazes eram inflamados e passavam o dia a inventar com que se degladiarem só para ouvirem o tilintar das espadas. Adão ficou uns quantos dias a dormir, a maçã caira-lhe mesmo mal. Na verdade a única coisa que lhe encontraram fora uma lagarta branca. Adão no seu delírio febril falava de uma serpente, mas era apenas uma lagarta da fruta. Por seu lado Eva, chorosa, não sabia como explicar o que se estava a passar. A única coisa que ela sabia é que naquele dia tinha ido andar de bicicleta com Adão. Foram nadar até à cachoeira junto à cameleira. Há sempre muitas maçãs no chão, vermelhas, verdes, mas todas tinham um ar lustroso, refrescante e apetitoso. Eva despiu-se para se banhar e pegou numa maçã para a lavar na cachoeira. Adão já evidenciava alguns sinais de insolação, mas acabou por mergulhar também e cedeu a comer aquela maçã fresca, vermelha, molhada, suculenta, que Eva trincara e lhe estava a partilhar. Adão comeu, comeu, e acabou por comê-la toda, Eva estava esfusiante e ria, ria, ele tinha-a comido toda, e dizia ele que não tinha fome. Dali foram os dois de novo para casa, o sol já se punha e ouviam a voz do pai de Adão a chamá-lo. Horas depois Adão estava febril, delirando, na cama.

Buganvília não acreditava de todo que Eva quisesse envenenar Adão, Carlos achou extremamente bela a possibilidade da serpente. E nisto deambulavam os dois quando Buganvília se começou a despir.

Não, não, não não não, não não não, não vais tomar banho nesta cachoeira. Mas Buganvília, rindo, escapou-se-lhe e mergulhou. Carlos foi atrás. Nadaram, riram, tocaram-se, beijaram-se, amaram-se dentro de água, e por fim, comeram uma maçã. Era doce, era fresca, era suculenta e saborosa...

De repente Buganvília começou a aperceber-se que Carlos estava a ficar muito branco, cada vez mais branco. Buganvília ficou muito aflita, mas não sabia o que havia de lhe fazer, não conseguia sequer tirá-lo da cachoeira. Carlos estava branco como a neve, e começava a ficar  diáfano, como se estivesse a... a dissolver-se na água. E dissolveu-se, lentamente, ondulante, mesmo por debaixo do nariz de Buganvíiiliaaa....

Buganvíiiiliaaa... chloafafachloaf  aahhh

Buganvília acordou um pouco assustada, o pé fugira-lhe resvaladiço por entre as pedras musgosas do riacho. O banho já estava frio. Lá fora o lusco-fusco já tinha partido. Era noite cerrada. Buganvília saiu do banho, secou-se, e cantarolando desceu as escadas. No andar de baixo, na sala já aquecida, o jantar esperava por ela. Carlos rodeou-a pela cintura, cheirou-a, soltou um suspiro. Na mesa uma cesta cheia de maçãs frescas esperava por eles.

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