terça-feira, 15 de setembro de 2009

Definições


Vivem nos beirais dos telhados, em frente da minha janela, ervas silvestres em verde seco, que florescem descaradamente em tons de rosa flamejante, como se lhes fosse permitido florir com a mesma naturalidade que uma planta cientificamente classificada, daquelas que crescem em jardins botânicos, especializados em plantas cientificamente classificadas. Vejo-as viver, respirar e sorrir com o sol e com os gritos das gaivotas pela manhã. À noite espreito-as e encontro-as aninhadas, juntinhas, protegendo-se do frio e da humidade que vem do rio. Vivem nos beirais dos telhados e não têm nome, nem classificação científica. Pessoas, que poderíamos pensar mal intencionadas, diriam que eram apenas ervas daninhas, e que por isso vivem nos beirais dos telhados. Mas não são mal intencionadas, apenas ignorantes. E as ervas que crescem em frente da minha janela, nos beirais dos telhados, não sabem da existência das pessoas ignorantes, nem dos jardins especializados em plantas cientificamente classificadas. A sua totalidade é simplesmente viver, com o sol e a liberdade, em cima dos telhados.

Por vezes à noite oiço-as sussurrar, em cima dos telhados. E quando sussurram é como um aviso que vem com o vento, que diz que o amarelo e o pardo vão pegar-se por um pedaço de nada apanhado num saco do lixo perdido na rua. A rua é pequena e os telhados são das ervas silvestres. O amarelo e o pardo nem sempre concordam com a divisão de território e os gritos agudos que elevam pela noite solitária fazem gelar os ossos. Quando amanhece, a rua é das pessoas, e o amarelo e o pardo já não disputam a fronteira dos seus territórios de acasalamento e sobrevivência. Coabitam em silêncio e tentam passar despercebidos. Sabem que no silêncio salvaguardam a sua liberdade. Para as pessoas ignorantes o amarelo e o pardo são vadios, não têm nome, nem classificação científica, não têm registo da sua árvore genealógica, nem sabem o que isso é. A totalidade deles é viver, simplesmente, apanhar sol e serem livres e caçarem à noite na rua deserta.

Às vezes, o pardo aventura-se fora do seu território e desce a rua até ao cruzamento onde as escadinhas o fazem subir a outra realidade, onde há outros semelhantes, que como ele procuram na noite o seu sustento. Há certas noites que o pardo encontra um outro ser pelo caminho. Costuma deitar-se no banco ao cimo das escadinhas. O pardo já o conhece pelo cheiro intenso. Observa-o e não o compreende. Não sabe que são de espécies diferentes, não sabe classificar isso. Mas o pardo não é propriamente ignorante, pois se o fosse diria que aquele ser era um vagabundo. Para o pardo ele é apenas um ser, que na profundidade dos seus olhos, transporta a história do mundo. O ser ressona enrolado num cobertor velho. O pacote de vinho de temperar tombado no chão. O pardo observa e pergunta-se se ele terá deixado algumas sobras nos sacos do lixo. O ser não sabe da existência do pardo, nem das ervas silvestres nos beirais dos telhados, nem das pessoas ignorantes. A sua totalidade é ser todas as pessoas do mundo, todas as realidades aparentes, todas as ilusões verdadeiras. No fundo dos seus olhos, todos os medos dos homens, e todas os desejos inocentes dos que um dia o hão-de ser.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Requiem


Acendeu um cigarro quebrando o silêncio do quarto. Já não fumava há anos. A chama iluminou a treva que o envolvia, densa, tentacular e subversiva. O quarto estava praticamente vazio. Uma mesa, uma cadeira, uma cama de corpo e meio, e um espelho. Aquela luz no espelho reflectiu o tumulto do mundo e do seu interior. Vozes, mil, imagens e impressões. Algumas, reconheceu-as. Deixou-as ir. Finalmente tinha compreendido que não as podia agarrar. Já não o queria, já não precisava.

O fumo acinzentado descrevia um ritmo sensual em direcção ao vazio, subindo, por ser leve, e porque o vazio é sempre no andar de cima. Fumou o cigarro lentamente. Fumou o silêncio junto com ele.

Olhou de soslaio o espelho. Entrava uma réstia de luz pela janela esconsa das águas-furtadas. O candeeiro lá fora permitia vagas nuances de percepção, intermitentes, como soluços alaranjados. O efeito, poder-se-ia dizer, era como um filme, ou um sonho. Sentia-se a sonhar a vida, qual actor secundário do seu próprio guião.

Olhou o espelho. No instante anterior não estava lá nada, e agora um rosto, um corpo, que denunciava as formas femininas de uma memória demasiado viva, demasiado presente. Como se tivesse sido accionado o botão de fast forward, viu passar um amontoado de imagens avançando rapidamente no tempo, precipitando-se para o momento presente, vindo abruptamente ao seu encontro, naquele quarto. Um rol de cenas da vida que vivera até então. Cenas que não estavam montadas, ainda, para que fosse coesa essa experiência. Estavam todas ali guardadas, como num baú antigo, demasiado velho e empoeirado para ser aberto.

Não sentiu nada, deixou-as ir.

Sucedeu-se outra imagem, outra mulher, diferente da anterior, igualmente esquecida, igualmente mal resolvida, mais uma memória a precisar de espanador, ou mesmo de um bom balde de água e lixívia. Novamente as imagens se sucederam em catadupa, e sempre assim, repetidamente. Ora uma mulher, ora um homem, ora uma situação escondida, aparentemente sem importância, aparentemente esquecida, ou nunca lembrada.

Não sabia mais como tinha dado início àquele processo. Não conseguia pensar. E sem aviso voltou tudo de novo, todas aquelas imagens, aquelas pessoas, as mesmas cenas. A solidão era agora como uma coisa sólida, viscosa, que se lhe agarrara ao corpo, à alma. Sentiu frio, muito frio. As mãos começaram a gelarem-lhe, e os pés fizeram-lhe companhia. O frio estendeu-se pelo corpo todo, por fora e por dentro, e escapava-se para o exterior de si numa névoa esbranquiçada. O silêncio era agora um peso sobre o seu peito, denso, acastanhado. E veio a dor, a angústia e o soluço. Quentes e insalubres as lágrimas verteram em torrentes convulsivas, como um rio que corre rápido à procura do mar para se lhe unir. Unir-se a quê? Unir-se a quem? Estava só. Só. Chorou. Chorou até sentir o âmago da sua dor junto à massa óssea e dissipar-se, pelo corpo, enchendo-o de um vazio gélido e contundente.

Respirou fundo inalando o momento com todas as suas forças, integrando-o em si, aceitando-o. Olhou de novo o espelho. Voltaram todas as imagens, mas agora todas elas tinham o seu rosto, a sua pele, o seu corpo, gasto, velho e doente. Tinha sido sempre ele, sempre ele, sozinho. Todas aquelas imagens… toda aquela vida… sempre ele, sozinho… sempre ele, uma imagem apenas, no espelho…

Abriu finalmente um sorriso, de dentes gastos pelo tempo, pela solidão. Olhou-se e viu-se inteiro, e viu que nada tinha sido em vão, mas que já não podia repetir-se. Não podia repetir-se nem hoje nem sempre, que tudo era nada…

E o seu rosto então transformou-se, a sua pele a alisar-se a tornar-se branca, tão branca e de tal pureza que lhe arrancou um calafrio. Os cabelos negros como a noite, compridos e lisos, os lábios carnudos e vermelhos afloraram naquela pele, sorridentes. Os olhos traziam cumplicidade e brincavam marotos com o brilho que lhe era próprio. Escuros, densos. Esta mulher ele nunca vira, apesar de muito ter falado sobre ela toda a sua vida. Era bela, toda vestida de negro. Mas o seu olhar era frio e distante como se não conhecesse o tempo. Com um sorriso a brincar-lhe no rosto, ela chamou-o. Lentamente levantou-se e dirigiu-se ao espelho. Ela estendeu-lhe a mão. Pegou na mão dela e deixou-se ir, primeiro um pé, depois o outro, sem esforço, sem resistir, entrou no espelho. Finalmente Era, como sempre devia ter sido. Agora podia compreender tudo. Não havia mais dor, nem esquecimento, tudo era claro, como a água límpida de um rio que se apressa em chegar ao mar para se lhe unir.