sábado, 11 de setembro de 2010

A Roda do Mundo

Sentou-se no meio daquela praça quadrada onde o sol apenas entrava pelo braço norte, pela Rua da Memória. Olhou em volta. Era uma praça quadrada. Quatro ruas, e apenas quatro, convergiam até ali. A Rua da Memória, a Rua do Esquecimento, a Rua do Devir e a Rua da Bica Pingada. A praça era cinzenta. Os prédios altos eram tão altos que não deixavam passar o sol, pelo que este só aparecia pela Rua da Memória que era a única que tinha uns edificios todos em vidro o que possibilitava a passagem da luz, refractada, é certo, mas extensa, um pouco estreita, mas ainda assim, luminescente o suficiente para provocar nos traseuntes algum alívio da lividez que lhes ocorria ao deterem-se ali por muito tempo. Não havia cor. Os prédios eram altos, cinzentos. Eram rectangulares, cheios de janelas pequenas, quatro por andar. Eram altos e cinzentos e cheios de janelas quadradas e pequenas. Não havia luz, não havia cor. Havia som, um burburinho constante, como uma moinha, um zumbido permanente no mercado que decorria sempre naquela praça. Era o mercado dos infortúnios, onde todos os que precisavam de um pouco de descanso vinham comprar os seus, para poderem, tá visto, descansar... ter um pouco de paz. Sentou-se e esperou. Observou tudo e todos à sua volta. As pessoas não sabiam que eram cinzentas, com um leve roçar amarelado, diga-se, mas cinzentas. Observou-as a chegar, a escolherem um lugar junto ao chafariz central onde dali a nada chegavam os saltimbancos dos infortúnios com a sua mercadoria. Os stands já estavam montados. Estavam sempre montados. Era um negócio muito lucrativo. Todos haveriam de querer e poder, claro, um dia, pagar para ter um qualquer infortúnio, uns dias de férias forçados, solidários... Observou também os cães e os pombos, o chão e o céu. O céu estava lá tão em cima que o cinzento não lhe podia chegar, então o cinzento ficava a pairar pela cintura dos prédios altos, o que de certa forma impossibilitava as pessoas de olharem o azul do céu, que estava demasiado acima. Observou a sua respiração. Era lenta, descansada, sem pressas, um pouco fria e húmida, talvez já com um leve toque febril, talvez já um pouco cinzenta. Começaram a chegar os feirantes, engravatados, com as suas suitcases em pele, os seus pda’s, eram homens cheios, tão cheios que pouco lhes sobrava de tempo. As pessoas começavam agora a aglomerar-se à volta dos stands. Antigamente chamavam-se-lhes barracas, mas hoje seria uma ofensa. Grande tumulto, toda a gente a negociar qual a melhor maleita, qual a melhor desgraça, que hospitais escolher, e as companhias de seguros. Podiam falar também das prescrições e adiantar trabalho, já ia a ficha mais preenchida quando o caso chegasse a vias de facto. Esperou e observou, sempre com olhar atento. Logo vieram sentar-se a seu lado 3 mulheres, já tinham feito as suas compras e estavam satisfeitas. Como quem não quer a coisa esticou a orelha para ouvir o que elas tinham comprado a ver se lhe soava bem. A primeira estava satisfeitissima, tinha realizado uma bela compra, baixo custo, em hospital estatal, uns belos dias de repouso sem sair da cama. Tinha ela comprado um acidente de viação. A outra era mais ligada aos seus, à terra e ao seu chamado, preferiu comprar um ataque do seu prórpio cão de guarda. A mais nova das três, estava entediada, escolheu algo diferente e primou pela originalidade e ousadia, uma briga haveria de levar-lhe o marido para os braços de outra e uma garrafa de ácido seria eficaz para lhe queimar os seus próprios braços e um pé. Ficou ali a digerir aquela informação, a ver o entusiasmo envolvente, a perceber se se envolveria com ele. Não conseguia decidir-se. Já ali tinha estado antes e comprara sempre acidentes. Agora queria algo mais controlado, pois isso simbolizava uma maior autonomia face ao control. Acabou por se decidir por um pack flexivel e optou por uma infecção, que não haveria de ter consequências tão fortes quanto os acidentes, mas pelo menos dava-lhe quase 3 semanas de repouso. Contrato assinado era altura do reset de memória. Ninguém saía daquela praça sem o ter feito. Instalado o novo programa era como se sempre tivesse estado lá e a lembrança daquele acordo passaria para os confins do subconsciente. Ao início da tarde todos já estavam servidos e amnesiados. Já não se lembrava(m) porque estava(m) ali.

Sentou-se no meio daquela praça quadrada, junto ao chafariz e esperou, observando os rostos alheios à procura de uma expressão nos seus olhares. Nada... não encontrava nos olhos que se cruzavam com os seus mais que esquecimento e apatia. Todos percorriam assim as avenidas e a praça apenas caminhando pela indiferença. Subitamente ouviu-se o som de uma travagem, um estrondo, um embate, numa avenida perpendicular à Rua do Devir... suspensão... como que um despertar e todas as pessoas agora se remexiam dentro dos seus próprios corpos, incomodadas pela memória celular ao relembrar alguma coisa bem escondida, e que as fazia finalmente sentir... como uma droga. Muitos dirigiram-se para lá, em tumulto, aos tropelões... há coisas que só acontecem aos outros... e assim permaneciam na ignorância após aquela dose segura de adrenalina. Caminhou lentamente, satisfazendo a curiosidade daquele jogo interior que lhe dizia que apostava que aquele acidente teria ocorrido com uma daquelas caras que mesmo agora haviam partilhado consigo a mesma curva do chafariz, a mesma curva temporal, como uma janela aberta a todas as possibilidades, potencialmente escolhidas em consciência. Aproximou-se e viu pelas reentrâncias do movimento dos corpos em excitação pela dor alheia, que era de facto uma das três mulheres que anteriormente falavam alegremente sentadas ao seu lado, no chafariz. Parecia não ser muito grave, mas haveria de lhe dar uns bons meses de descanso. Afastou-se em passos lentos, absorta na estranheza da ideia de que nada acontece que não seja por escolha própria... estranhos prazeres a que nos entregamos para que possamos por momentos parar, sentir, olhar e ver, apenas, deixando fluir a vida e a verdade do universo... afastou-se, cada vez mais, enquanto lentamente se espalhava pelo seu corpo o desconforto asténico, febril, e a urgência de se enroscar e dormir. À sua passagem os pombos, num adejar cinzento e empoeirado, afastavam-se inseguros para logo à frente retomarem os seus rituais de acasalamento... e a roda do mundo perpetuava a girar.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Corpo em musgo

Fios de água entretecidos descem serenos, em cascata, pelo corpo em musgo, num murmúrio doce e cristalino, como pássaros de asas soltas ao vento quente de fim de tarde, despertando no corpo a memória cálida do toque suave dos teus dedos nos meus... despertando no corpo memórias tão antigas como o tempo em que o tempo era nosso, sereno e suave, e também ele corria doce como a água, por entre o toque dos teus dedos, no meu corpo em musgo...

sábado, 4 de setembro de 2010

Quatrilenga

Eram quatro penas de pavão, estendidas ao sol, na cauda de um varandim. O sol estava preguiçoso, torpe, sonolento, deixou-se cair para o lado sobre o rio cálido do anoitecer do corpo dela, estendida sobre a cama, lânguida, sonolenta, torpe, preguiçosa...

Eram quatro sentidos sem sentido, estendidos ao sol, quatro irmãos de indiferença. Todos eles únicos, poderosos, alegres, em viagem espiralada... Ela sentiu-os através dos vidros do antigo varandim, espreitando, insidiosos, os movimentos ociosos do seu corpo...

Eram quatro tempos e um acorde de quarta aumentada, cairam-lhe em cima de cama, disparados do quarto andar. Quatro diabos melódicos, delicados, doces, despertaram-lhe os sentidos em impulsos delicodoces...

Eram quatro, sempre quatro, até ao infinito, a repetir-se, sempre a repetir-se até que ao fim da eternidade lhe sucedesse o cinco!

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Como Cuidar de Ti

Os gatos não são como as pessoas…


… Não comeram da maçã, não falaram com serpentes, nem conheceram Adão, não estão nus por dentro nem por fora, nem na alma nem no corpo, não respeitam a deus e não têm vergonha, não se envergonham de nada, não enveredam por vãs estéticas, nem pelas futilidades televisivas, não fazem dietas, nem usam batons, nem perfumes para sair à noite, não pintam o pêlo nem lavam os dentes, mais não querem que comida na tigela e água fresca e uma mão que os afague quando muito bem lhes apetece, não embarcam em coscuvilhices de alcova, nem em hipocrisias caseiras, são o que são sem medos, inseguranças, ou outros ardis quotidianos cheios de nada, não lêem livros nem jornais, não vão a palestras nem ao teatro, não comentam a cor do pêlo de outros gatos nem outras ambiguidades que tais, mas dormem, dormem muito e sonham, sonham com comida, com o paraíso dos gatos e comida, e o deus dos gatos e comida, e acordam para comer e voltam a dormir e a sonhar, e no intervalo desta azáfama brincam, saltam e correm e zangam-se, e falam com as pessoas sem entender que elas já não os entendem, voltam então a brincar, com novelos e pássaros e canetas e pendentes, e com o maço de cigarros deixado ao pé do computador, e não têm consciência pesada pelo peixe que pescaram do prato em cima da mesa e fogem sem que na verdade o medo tenha uma forma concreta, e saltam pelos telhados e vão às gatas pela noite fora e voltam e começam tudo de novo, sem tédios nem tormentas nem questões existenciais, e são felizes, sem possuir, uma consciência narcísica ou sequer o conhecimento de que são gatos e são livres…