segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Requiem


Acendeu um cigarro quebrando o silêncio do quarto. Já não fumava há anos. A chama iluminou a treva que o envolvia, densa, tentacular e subversiva. O quarto estava praticamente vazio. Uma mesa, uma cadeira, uma cama de corpo e meio, e um espelho. Aquela luz no espelho reflectiu o tumulto do mundo e do seu interior. Vozes, mil, imagens e impressões. Algumas, reconheceu-as. Deixou-as ir. Finalmente tinha compreendido que não as podia agarrar. Já não o queria, já não precisava.

O fumo acinzentado descrevia um ritmo sensual em direcção ao vazio, subindo, por ser leve, e porque o vazio é sempre no andar de cima. Fumou o cigarro lentamente. Fumou o silêncio junto com ele.

Olhou de soslaio o espelho. Entrava uma réstia de luz pela janela esconsa das águas-furtadas. O candeeiro lá fora permitia vagas nuances de percepção, intermitentes, como soluços alaranjados. O efeito, poder-se-ia dizer, era como um filme, ou um sonho. Sentia-se a sonhar a vida, qual actor secundário do seu próprio guião.

Olhou o espelho. No instante anterior não estava lá nada, e agora um rosto, um corpo, que denunciava as formas femininas de uma memória demasiado viva, demasiado presente. Como se tivesse sido accionado o botão de fast forward, viu passar um amontoado de imagens avançando rapidamente no tempo, precipitando-se para o momento presente, vindo abruptamente ao seu encontro, naquele quarto. Um rol de cenas da vida que vivera até então. Cenas que não estavam montadas, ainda, para que fosse coesa essa experiência. Estavam todas ali guardadas, como num baú antigo, demasiado velho e empoeirado para ser aberto.

Não sentiu nada, deixou-as ir.

Sucedeu-se outra imagem, outra mulher, diferente da anterior, igualmente esquecida, igualmente mal resolvida, mais uma memória a precisar de espanador, ou mesmo de um bom balde de água e lixívia. Novamente as imagens se sucederam em catadupa, e sempre assim, repetidamente. Ora uma mulher, ora um homem, ora uma situação escondida, aparentemente sem importância, aparentemente esquecida, ou nunca lembrada.

Não sabia mais como tinha dado início àquele processo. Não conseguia pensar. E sem aviso voltou tudo de novo, todas aquelas imagens, aquelas pessoas, as mesmas cenas. A solidão era agora como uma coisa sólida, viscosa, que se lhe agarrara ao corpo, à alma. Sentiu frio, muito frio. As mãos começaram a gelarem-lhe, e os pés fizeram-lhe companhia. O frio estendeu-se pelo corpo todo, por fora e por dentro, e escapava-se para o exterior de si numa névoa esbranquiçada. O silêncio era agora um peso sobre o seu peito, denso, acastanhado. E veio a dor, a angústia e o soluço. Quentes e insalubres as lágrimas verteram em torrentes convulsivas, como um rio que corre rápido à procura do mar para se lhe unir. Unir-se a quê? Unir-se a quem? Estava só. Só. Chorou. Chorou até sentir o âmago da sua dor junto à massa óssea e dissipar-se, pelo corpo, enchendo-o de um vazio gélido e contundente.

Respirou fundo inalando o momento com todas as suas forças, integrando-o em si, aceitando-o. Olhou de novo o espelho. Voltaram todas as imagens, mas agora todas elas tinham o seu rosto, a sua pele, o seu corpo, gasto, velho e doente. Tinha sido sempre ele, sempre ele, sozinho. Todas aquelas imagens… toda aquela vida… sempre ele, sozinho… sempre ele, uma imagem apenas, no espelho…

Abriu finalmente um sorriso, de dentes gastos pelo tempo, pela solidão. Olhou-se e viu-se inteiro, e viu que nada tinha sido em vão, mas que já não podia repetir-se. Não podia repetir-se nem hoje nem sempre, que tudo era nada…

E o seu rosto então transformou-se, a sua pele a alisar-se a tornar-se branca, tão branca e de tal pureza que lhe arrancou um calafrio. Os cabelos negros como a noite, compridos e lisos, os lábios carnudos e vermelhos afloraram naquela pele, sorridentes. Os olhos traziam cumplicidade e brincavam marotos com o brilho que lhe era próprio. Escuros, densos. Esta mulher ele nunca vira, apesar de muito ter falado sobre ela toda a sua vida. Era bela, toda vestida de negro. Mas o seu olhar era frio e distante como se não conhecesse o tempo. Com um sorriso a brincar-lhe no rosto, ela chamou-o. Lentamente levantou-se e dirigiu-se ao espelho. Ela estendeu-lhe a mão. Pegou na mão dela e deixou-se ir, primeiro um pé, depois o outro, sem esforço, sem resistir, entrou no espelho. Finalmente Era, como sempre devia ter sido. Agora podia compreender tudo. Não havia mais dor, nem esquecimento, tudo era claro, como a água límpida de um rio que se apressa em chegar ao mar para se lhe unir.

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