terça-feira, 28 de agosto de 2007

Onde Páram os Deuses?

Amanheci cinzenta como o dia. Levantei-me e rasguei em pequenos pedaços os sonhos que me atormentaram a noite. Deitei-os no lixo orgânico…

Acendi um incenso, para perfumar o dia, e sentei-me à beira-janela das traseiras, contemplando as aves no céu dourado, enquanto saboreava o ácido-doce de uma maçã verde rosada… – Salve Vénus! Mas Vénus já não se via no céu.

Ainda tinha, presas nos dentes, algumas palavras da noite anterior, que com a maçã se soltaram, sorrateiras, ecoando devagarinho na memória, – Onde param os Deuses? Reflectia nos seus contornos, e um sorriso zombeteiro aflorou-me o pensamento de: -Não estariam eles de férias… num desses destinos típicos das “pessoas felizes”… Varadero… Cancun… Phuket… E porque não? Com as facilidades que há por aí… Os créditos ao consumo que, como cogumelos num dia húmido de Outono, irrompem pela floresta urbana…

Acabei a maçã e reparei num par de olhos de mar em atenta observação dos meus pensamentos. Amina miou, esperando a mesma rapidez de compreensão de mim para ela. Com um pouco mais de atenção percebi que me dizia, – cuidado, vê lá como falas dos Deuses. E nos olhos dela vi passarem Peleu e Tétis, Aracne, Pandora… Pandora… Sorri-lhe e desvio o olhar dos seus olhos que a esta altura, de fixos, se multiplicaram na possibilidade de Argo, mostrando-me, talvez, que os Deuses não dormem!

Olho de novo pela janela e observo o burburinho lá fora, multicolor e agitado. Acendo um cigarro e retomo o dia pela porta do meio.

O cheiro das ruas, na sua azáfama matinal era um vício lânguido de saborear. Junta-se-lhe os sons e as cores, e o prazer do local entranha-se-me na pele. Frutos de todas as tonalidades, especiarias, óleos e essências, flores, num misto perfumado que delicia os sentidos… Tecidos, e vestidos, e jóias. E aves de todas as cores. Música ecoava pelas ruas vindas dos dedos e das bocas dos menestréis adocicando o ambiente. Palavras soltas, em regateio, outras, eram transacções finalizadas… Passeio, e observo, e contemplo, e absorvo. Era tudo tão vivo e tão alegre. E os cães ladravam agitados, e os cavalos reclamavam o almoço tardio.

Um homem puxa-me a manga do vestido… – menina, menina, que me diz deste belo exemplar?... A seu lado um belo pavão exibe os seus atributos e olha-me com olhar penetrante… – Trinta moedas de prata, menina, trinta dinheiros, uma pechincha… Sem ter tempo para responder, logo um velho de nariz adunco me assalta a atenção replicando com um sorriso a bailar-lhe nos lábios que não disfarçavam o ar coercivo… – Se precisar de um empréstimo, menina, faço-lhe juros baratos… e sorria desdentado com o reflexo pecuniário a transbordar-lhe dos olhos…


Perco-me de rir com aquilo e decido-me por um leão azul, ou seria uma pantera?, com um passo tão ágil como delicado, que não deixava dúvidas na escolha. Resolutamente ela caminha a meu lado e percebo que não pertence a nenhum mercador… Caminhamos, rua abaixo e a feira extingue-se, lentamente, atrás de nós… e os cheiros, e as cores, e a música, e o burburinho.

O sol vai alto e um dos seus raios desponta agora por entre as nuvens cerradas de azul-cobalto. Bate-me certeiro num olho e desperto. O seu sorriso zombeteiro lembra-me que estou atrasada… tenho de perder a mania de estar sempre a acordar dentro dos sonhos…

Tomo um duche rápido… trinco à pressa uma maçã verde rosada… escolho um vestido azul… pego na trela e saio para o trabalho na companhia do meu leão-pantera azul, que agora é também dourado.

Ao chegar à rua saúdo Vénus, que já não se vê no céu… e lá vou cogitando, neste dia cinzento de Verão…

– Mas onde param os Deuses?

1 comentário:

Geovana disse...

Linda passagem!
Gostei muito :)

P.S: Obrigada por comentar no meu blog. Pena que não dá para saber quem é você!

Mas quando quiser pode me vistar (blog) novamente.
Um abraço,
Geovana