Vivem nos beirais dos telhados, em frente da minha janela, ervas silvestres em verde seco, que florescem descaradamente em tons de rosa flamejante, como se lhes fosse permitido florir com a mesma naturalidade que uma planta cientificamente classificada, daquelas que crescem em jardins botânicos, especializados em plantas cientificamente classificadas. Vejo-as viver, respirar e sorrir com o sol e com os gritos das gaivotas pela manhã. À noite espreito-as e encontro-as aninhadas, juntinhas, protegendo-se do frio e da humidade que vem do rio. Vivem nos beirais dos telhados e não têm nome, nem classificação científica. Pessoas, que poderíamos pensar mal intencionadas, diriam que eram apenas ervas daninhas, e que por isso vivem nos beirais dos telhados. Mas não são mal intencionadas, apenas ignorantes. E as ervas que crescem em frente da minha janela, nos beirais dos telhados, não sabem da existência das pessoas ignorantes, nem dos jardins especializados em plantas cientificamente classificadas. A sua totalidade é simplesmente viver, com o sol e a liberdade, em cima dos telhados.
Por vezes à noite oiço-as sussurrar, em cima dos telhados. E quando sussurram é como um aviso que vem com o vento, que diz que o amarelo e o pardo vão pegar-se por um pedaço de nada apanhado num saco do lixo perdido na rua. A rua é pequena e os telhados são das ervas silvestres. O amarelo e o pardo nem sempre concordam com a divisão de território e os gritos agudos que elevam pela noite solitária fazem gelar os ossos. Quando amanhece, a rua é das pessoas, e o amarelo e o pardo já não disputam a fronteira dos seus territórios de acasalamento e sobrevivência. Coabitam em silêncio e tentam passar despercebidos. Sabem que no silêncio salvaguardam a sua liberdade. Para as pessoas ignorantes o amarelo e o pardo são vadios, não têm nome, nem classificação científica, não têm registo da sua árvore genealógica, nem sabem o que isso é. A totalidade deles é viver, simplesmente, apanhar sol e serem livres e caçarem à noite na rua deserta.
Às vezes, o pardo aventura-se fora do seu território e desce a rua até ao cruzamento onde as escadinhas o fazem subir a outra realidade, onde há outros semelhantes, que como ele procuram na noite o seu sustento. Há certas noites que o pardo encontra um outro ser pelo caminho. Costuma deitar-se no banco ao cimo das escadinhas. O pardo já o conhece pelo cheiro intenso. Observa-o e não o compreende. Não sabe que são de espécies diferentes, não sabe classificar isso. Mas o pardo não é propriamente ignorante, pois se o fosse diria que aquele ser era um vagabundo. Para o pardo ele é apenas um ser, que na profundidade dos seus olhos, transporta a história do mundo. O ser ressona enrolado num cobertor velho. O pacote de vinho de temperar tombado no chão. O pardo observa e pergunta-se se ele terá deixado algumas sobras nos sacos do lixo. O ser não sabe da existência do pardo, nem das ervas silvestres nos beirais dos telhados, nem das pessoas ignorantes. A sua totalidade é ser todas as pessoas do mundo, todas as realidades aparentes, todas as ilusões verdadeiras. No fundo dos seus olhos, todos os medos dos homens, e todas os desejos inocentes dos que um dia o hão-de ser.
Sem comentários:
Enviar um comentário