sábado, 3 de novembro de 2012

Samhain

Nenhum Homem pode contar a nossa história, pois que nenhum Homem assistiu ao nosso nascimento, e antes de nós nada mais era que as águas profundas do caos no interior do Ovo Primordial.

Um alçapão de luz carmesim dourada emite o seu fumo. Uma forma nua semi-humana ganha asas e desfaz-se em luz e prata, numa espiral escarlate de mil olhos que pulsa num coração de fogo, ardendo em lábios onde brinca o sorriso do segredo... Árvores num bosque e o vulto de uma mulher gorda encaracolada, rodeada de uma massa de criaturas vivas que se transforma em brasas e estas em cinzas e que se afundam no chão, e no interior apenas ossos na sensação de uma lápide. A névoa cobriu tudo e estou de volta aqui com um círculo de gigantes peludos em sombra à volta.

Os Homens chamaram-me Senhora da Noite e temiam o meu canto quando o manto invernal cobria a Terra. No meu útero, no interior de mim todos os sons do mundo eram um só som, um uníssono harmónico do pulsar da vida, ainda semente. No Fogo Sagrado lavo as minhas mãos e a minha alma. O meu corpo nu ondulando nas chamas que entoam o meu nome e recolho-me num maciço silêncio ao interior da minha casa profunda, recolho-me intensa, cheia de luz e fogo, e adormeço no interior de mim em amplexo fetal e sonho os sonhos do mundo antes dele acontecer, sempre antes dele acontecer. Eu Sou, antes de acontecer.

Enleio-me em teias sedosas, ígneas, silenciosas, tecidas por um gato risonho. 

Num olho reptiliano, que palpita crepitante no fogo elemental, Aracne guarda o portal dos véus do condicionamento. 

Dispo-me, dispo-me e observo e sinto e amo o fogo interno da Terra. A teia é a palavra do escriba onde a Vontade enleia os incautos adeptos que enfim compreendem ser tarde demais. 

Caminho por terras de serpentes com os pés nus e serenos. Dancei o vento em véus nas minhas mãos de sangue, o sangue dos Homens na minha pele em correntes e sulcos e meandros do tempo. Tudo era som e o sibilar das serpentes ígneas. Ígneo sabor do teu beijo letal, e canto e danço, o corpo despido do tempo... o corpo despido de estrelas, a Lua pendurada nos cabelos em fios soltos de terra húmida. O interior quente, fervilhante e embriagada de som. Pulsa, pulsa e ferve e canta e dança, à roda, à roda, como um condor, e a dor é infinitamente Nada, e irrompe no firmamento dançando, bruxuleando, ondulante, e o meu nome é o teu e o teu semblante a minha voz e Eu Sou a Serpente Ígnea, a doce serpente no teu interior, verde e prata e violeta brilhante, com odor a canela e cardamomo...

Dança, dança a morte e canta e solta o grito do destino e desvela o tempo das memórias, deixa-as escorrer pelos cabelos, pela pele, pelos dedos que tecem o som em crescendo, crescendo, desenrolando-se, para cima e para baixo, tudo unindo até ao vazio infinito de todas as coisas...

Iooooiaaaa....

Grito fluido, alado, em cetins rúbeos e flamejantes... cresce e sobe, sobe, sobe, sobe, escuta o fogo que cresce em anéis purpúreos no centro de ti, antes que as estrelas escorreguem do céu e se afundem no mar, no turbilhão das ondas, do sangue que te escorre das mãos...

Lembras-te de mim do tempo em que fui, contigo? Lembras-te do grito que me trouxe à vida das entranhas da Terra? Lembras-te da cor dos teus olhos reflectindo os meus com o assombro inocente de quem finalmente inicia a iniciar a viver? Lembras-te do cheiro do mar, corpo ainda vestido das águas quentes das entranhas da minha Mãe? Lembras-te do sabor do mar? E do canto da serpente? E do brilho solar incandescente dos teus olhos reflectindo os meus? 

Os teus dedos também são criação dos deuses...

Tece, entretece, enlaça e enleia, a criação, nos teus dedos, e fecha os olhos, para que os dedos trabalhem livres... Constrói deuses e heróis e dá-me um nome e vivifica-me com a tua voz, e ela ecoará pelos mundos... Todos os mundos O Mundo, num ovo reptiliano e ancestral!


sexta-feira, 16 de março de 2012

A Totalidade do Ser

Sento-me confortavelmente, fecho os olhos, expiro todo o ar da cavidade torácica. Inspiro, lenta e profundamente, sinto o ar a entrar pelas narinas, a encher os pulmões. Continuo a respirar, lenta e profundamente... consciente. Observo. Observo de olhos fechados toda a realidade dentro de mim. Como projecto essa realidade, onde projecto essa realidade, em que espaço, em que tempo projecto essa realidade a acontecer... vou mais fundo. Silêncio... observo. Ouço a minha Voz no silêncio interior. Escuto activamente e observo. A mente começa a ficar impaciente, procura interferir, seduzir-me com questões mil tão pouco substanciais como a realidade existente lá fora. Fora de mim. Conheço-a, e observo-a. Sei que está desconfortável e que lhe é urgente voltar à realidade limitada que auto-concebe para continuar a existir comigo. Por momentos desiste. Talvez tenha adormecido. Prossigo. Sinto o meu corpo total, sinto na sua totalidade as possibilidades infinitas em que posso acontecer manifesta. E ao fundo, como uma tela que se abre e se aproxima sem pedir licença, corre um filme. Observo. É o filme da coerência socializante. Os limites da existência que dão coesão a toda uma estrutura que de tão imprevisível acontece real e palpável, de tal forma, que nela acreditamos como se mais nada pudesse Ser. Observo. Observo apenas, com total estabilidade. Sinto o meu corpo. E de tanto o sentir apenas o sinto, sem interferência do chão onde assenta. Pairo no vazio, no vazio das infinitas possibilidades onde me posso acontecer. Sonho. Sonho com todas as minhas células ao mesmo tempo, dentro e fora, em sintonia, ressoando com o Sonho, esse que ninguém sabe desvendar o mistério. 

O Homem ainda é uma ponte suspensa no abismo, mas o Super-Homem um potencial infinito dentro de todas as bestas. 

Sonho com todas as minhas células e sinto-as sonhar. E esse potencial não é mais que tensão necessária à divina Criação de se experienciar. Sonhando... sonhando o Homem. O Homem sonhando Deus. Uma relação circunferencial. Quando volto do sonho, deste que sonho com todas células, doem-me todas as possibilidades de me ser. Observo. No interior tudo permanece na sua habitual impermanência. E chega a mente com a sua algaraviada... perturba-me... vem acompanhada. E às vezes pergunto-me como podem existir tantas dentro de mim? 

Levanto-me, dispo-me de toda a experiência para poder vestir a roupagem da realidade coerente dos meus vizinhos. Saio. Observo o Sol e o seu diálogo com a Terra. Estão bem dispostos, joviais, quase alheios ao que se passa no seu entremeio. Sigo até ao café onde tomo o pequeno-almoço e observo as pessoas à minha volta. Todas estas pessoas dão coerência à minha realidade física. Todas elas como frutas maduras caem da minha mente para a realidade que construo. Aqui e noutros lugares de possíveis realidades manifestadas, e no fundo sei que a manifestação não é mais que uma necessidade da realidade se sentir ser. Doem-me todas as possibilidades que estas pessoas representam para mim. Todos os espelhos, todas as imagens infinitamente representadas em todas as possíveis direcções. O que está em cima sugere ser igual ao que está em baixo. Mas na representação desta coisa única onde todos somos parte de um mesmo organismo vivo, tudo tende a dispersar ao invés de confluir para o equilíbrio. E repito-me infinitamente, num infinito de multipossibiliades paralelas, onde não alcanço a consciência de me Ser. Razoabilidade sugerem-me os que passam ao meu lado. Razoabilidade é tudo o que não preciso. Razoabilidade é silenciar a consciência, é dar espaço à mente para se apoderar de toda a matéria de que é feita o sonho, dissolvê-lo, no sonho do mundo. Quem sonha este sonho senão Eu? Quem sonha este sonho para além do meu Ser? 

Sento-me num banco de jardim e entabulo conversa com um freixo simpático que está logo ali ao lado. Ele não faz ideia do tempo, nem das coisas que giram à volta dele. Apenas faz ideia de si, e de se Ser, Total. Consciência pura. No início foi-me difícil compreendê-lo, mas passado um bocado, talvez no mesmo instante, falávamos fluentemente como se sempre tivesse sido assim. Tudo o que trocámos foram histórias do Agora ainda que tivessem acontecido na minha percepção de outras eras. Há palavras que ele não compreende e que descartei por também não lhes encontrar um verdadeiro significado. Palavras que de tão gastas perderam a essência ainda que não a coerência. As palavras essenciais não se dizem, sentem-se e expressam-se no sentir, tudo o mais são formalismos insípidos e sem conteúdo. Os freixos são deveras interessantes, grandes conhecedores dos mistérios do mundo e da palavra divina, esse som primordial que trocam com o vento, com a terra e com a chuva, com o sol, com a lua e com as estrelas. Caiu a noite e ainda estávamos conversando. Podia sentir a minha pele brilhar com uma luminosidade que me era intrínseca. Todos os meus átomos vibravam plenos de energia. Quando lhe perguntei como dormia sorriu... tudo é um sonho, disse, não te esqueças, estamos sempre a sonhar. Sorri...

... o sonhador é um fingidor e por vezes finge tão completamente...

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Janela de Buganvília

O Enigma da Maçã

O céu estendia-se num espreguiçar colorido por cima do telhado castanho dourado de Buganvília. O lusco-fusco aproximava-se sorrateiramente por entre as diáfanas nuvens que migravam para oeste.

A casa de Buganvília estava bem acompanhada de árvores várias, baixas e frondosas, que num agradável amplexo proporcionavam um toque macio de verde refrescante, por entre os quais os raios de sol, sorridentes e mornos, ondulavam desde a aurora ao entardecer.

Ao tempo desta parca descrição já o lusco-fusco se fazia sentir por toda a parte de baixo da casa, quase alcançando as janelas. Era um costume de há anos o lusco-fusco aproximar-se por debaixo da casa e lentamente começar a subir até atingir as janelas do primeiro andar e num repente como que num solavanco abocanhar completamente as varandas do andar superior, onde Buganvília preparava o seu banho perfumado com pequenas flores azuis de jasmim. Buganvília apreciava banhar-se ao entardecer. Abandonava o corpo sedoso nas fragâncias espumosas e deixava-se embalar pelo sussurro do vento lá fora, numa agradável e doce melodia.

Naquele dia aquele banho estava particularmente agradável, tão agradável que Buganvília se deixou adormecer.

Buganvília adormeceu, leve e sedosa, num sussurro, embalada pelas águas cálidas daquele banho perfumado. 

(...)

Buganvíiiliaaa, Buganvíiiliaa espera. Era Carlos. Buganvília ria e continuava a pedalar, alegremente, ao sabor do vento como um barco à vela, pedalava e ria. Carlos corria atrás dela, e ela, diminuindo lentamente a velocidade, deixou-se apanhar. Riam os dois. Rebolaram pela clareira quase até junto ao rio. Detiveram-se exaustos por debaixo da cameleira, riam como crianças, livres. O chão ao lado deles estava atapetado  de maçãs, verdes, frescas, perfumadas, desejosas de serem saboreadas por bocas quentes, apaixonadas. Carlos deitou-se para trás. Fingindo que observava o céu meteu-se por uma deambulação adentro sobre a famosa dentada que Adão dera na maçã. Toda a vila falava sobre isso. Tinha sido a Eva que lha dera, já não era segredo para ninguém. Não se falava noutra coisa e até Carlos e Buganvília estavam interessados nas últimas sobre aquele acontecimento que tanto perturbara as vidas pacatas dos moradores de Vila Paraíso.

Adão ficara branco como a neve, uma indisposição terrível. Dizia-se até que Eva o podia ter envenenado. Mas para quê? Não eram eles um casal tão dedicado? Toda a gente sabia que mais dia menos dia aquilo dava em casamento. Bastava que ambas as familias estivessem de acordo quanto aos dotes. Mas depois do sucedido o pai de Adão, que tinha a mania que era deus lá no sítio, proibira-o de ver Eva e até pusera dois gaiatos à entrada da casa para manter Adão bem quieto no seu interior. Os rapazes eram inflamados e passavam o dia a inventar com que se degladiarem só para ouvirem o tilintar das espadas. Adão ficou uns quantos dias a dormir, a maçã caira-lhe mesmo mal. Na verdade a única coisa que lhe encontraram fora uma lagarta branca. Adão no seu delírio febril falava de uma serpente, mas era apenas uma lagarta da fruta. Por seu lado Eva, chorosa, não sabia como explicar o que se estava a passar. A única coisa que ela sabia é que naquele dia tinha ido andar de bicicleta com Adão. Foram nadar até à cachoeira junto à cameleira. Há sempre muitas maçãs no chão, vermelhas, verdes, mas todas tinham um ar lustroso, refrescante e apetitoso. Eva despiu-se para se banhar e pegou numa maçã para a lavar na cachoeira. Adão já evidenciava alguns sinais de insolação, mas acabou por mergulhar também e cedeu a comer aquela maçã fresca, vermelha, molhada, suculenta, que Eva trincara e lhe estava a partilhar. Adão comeu, comeu, e acabou por comê-la toda, Eva estava esfusiante e ria, ria, ele tinha-a comido toda, e dizia ele que não tinha fome. Dali foram os dois de novo para casa, o sol já se punha e ouviam a voz do pai de Adão a chamá-lo. Horas depois Adão estava febril, delirando, na cama.

Buganvília não acreditava de todo que Eva quisesse envenenar Adão, Carlos achou extremamente bela a possibilidade da serpente. E nisto deambulavam os dois quando Buganvília se começou a despir.

Não, não, não não não, não não não, não vais tomar banho nesta cachoeira. Mas Buganvília, rindo, escapou-se-lhe e mergulhou. Carlos foi atrás. Nadaram, riram, tocaram-se, beijaram-se, amaram-se dentro de água, e por fim, comeram uma maçã. Era doce, era fresca, era suculenta e saborosa...

De repente Buganvília começou a aperceber-se que Carlos estava a ficar muito branco, cada vez mais branco. Buganvília ficou muito aflita, mas não sabia o que havia de lhe fazer, não conseguia sequer tirá-lo da cachoeira. Carlos estava branco como a neve, e começava a ficar  diáfano, como se estivesse a... a dissolver-se na água. E dissolveu-se, lentamente, ondulante, mesmo por debaixo do nariz de Buganvíiiliaaa....

Buganvíiiiliaaa... chloafafachloaf  aahhh

Buganvília acordou um pouco assustada, o pé fugira-lhe resvaladiço por entre as pedras musgosas do riacho. O banho já estava frio. Lá fora o lusco-fusco já tinha partido. Era noite cerrada. Buganvília saiu do banho, secou-se, e cantarolando desceu as escadas. No andar de baixo, na sala já aquecida, o jantar esperava por ela. Carlos rodeou-a pela cintura, cheirou-a, soltou um suspiro. Na mesa uma cesta cheia de maçãs frescas esperava por eles.

sábado, 11 de setembro de 2010

A Roda do Mundo

Sentou-se no meio daquela praça quadrada onde o sol apenas entrava pelo braço norte, pela Rua da Memória. Olhou em volta. Era uma praça quadrada. Quatro ruas, e apenas quatro, convergiam até ali. A Rua da Memória, a Rua do Esquecimento, a Rua do Devir e a Rua da Bica Pingada. A praça era cinzenta. Os prédios altos eram tão altos que não deixavam passar o sol, pelo que este só aparecia pela Rua da Memória que era a única que tinha uns edificios todos em vidro o que possibilitava a passagem da luz, refractada, é certo, mas extensa, um pouco estreita, mas ainda assim, luminescente o suficiente para provocar nos traseuntes algum alívio da lividez que lhes ocorria ao deterem-se ali por muito tempo. Não havia cor. Os prédios eram altos, cinzentos. Eram rectangulares, cheios de janelas pequenas, quatro por andar. Eram altos e cinzentos e cheios de janelas quadradas e pequenas. Não havia luz, não havia cor. Havia som, um burburinho constante, como uma moinha, um zumbido permanente no mercado que decorria sempre naquela praça. Era o mercado dos infortúnios, onde todos os que precisavam de um pouco de descanso vinham comprar os seus, para poderem, tá visto, descansar... ter um pouco de paz. Sentou-se e esperou. Observou tudo e todos à sua volta. As pessoas não sabiam que eram cinzentas, com um leve roçar amarelado, diga-se, mas cinzentas. Observou-as a chegar, a escolherem um lugar junto ao chafariz central onde dali a nada chegavam os saltimbancos dos infortúnios com a sua mercadoria. Os stands já estavam montados. Estavam sempre montados. Era um negócio muito lucrativo. Todos haveriam de querer e poder, claro, um dia, pagar para ter um qualquer infortúnio, uns dias de férias forçados, solidários... Observou também os cães e os pombos, o chão e o céu. O céu estava lá tão em cima que o cinzento não lhe podia chegar, então o cinzento ficava a pairar pela cintura dos prédios altos, o que de certa forma impossibilitava as pessoas de olharem o azul do céu, que estava demasiado acima. Observou a sua respiração. Era lenta, descansada, sem pressas, um pouco fria e húmida, talvez já com um leve toque febril, talvez já um pouco cinzenta. Começaram a chegar os feirantes, engravatados, com as suas suitcases em pele, os seus pda’s, eram homens cheios, tão cheios que pouco lhes sobrava de tempo. As pessoas começavam agora a aglomerar-se à volta dos stands. Antigamente chamavam-se-lhes barracas, mas hoje seria uma ofensa. Grande tumulto, toda a gente a negociar qual a melhor maleita, qual a melhor desgraça, que hospitais escolher, e as companhias de seguros. Podiam falar também das prescrições e adiantar trabalho, já ia a ficha mais preenchida quando o caso chegasse a vias de facto. Esperou e observou, sempre com olhar atento. Logo vieram sentar-se a seu lado 3 mulheres, já tinham feito as suas compras e estavam satisfeitas. Como quem não quer a coisa esticou a orelha para ouvir o que elas tinham comprado a ver se lhe soava bem. A primeira estava satisfeitissima, tinha realizado uma bela compra, baixo custo, em hospital estatal, uns belos dias de repouso sem sair da cama. Tinha ela comprado um acidente de viação. A outra era mais ligada aos seus, à terra e ao seu chamado, preferiu comprar um ataque do seu prórpio cão de guarda. A mais nova das três, estava entediada, escolheu algo diferente e primou pela originalidade e ousadia, uma briga haveria de levar-lhe o marido para os braços de outra e uma garrafa de ácido seria eficaz para lhe queimar os seus próprios braços e um pé. Ficou ali a digerir aquela informação, a ver o entusiasmo envolvente, a perceber se se envolveria com ele. Não conseguia decidir-se. Já ali tinha estado antes e comprara sempre acidentes. Agora queria algo mais controlado, pois isso simbolizava uma maior autonomia face ao control. Acabou por se decidir por um pack flexivel e optou por uma infecção, que não haveria de ter consequências tão fortes quanto os acidentes, mas pelo menos dava-lhe quase 3 semanas de repouso. Contrato assinado era altura do reset de memória. Ninguém saía daquela praça sem o ter feito. Instalado o novo programa era como se sempre tivesse estado lá e a lembrança daquele acordo passaria para os confins do subconsciente. Ao início da tarde todos já estavam servidos e amnesiados. Já não se lembrava(m) porque estava(m) ali.

Sentou-se no meio daquela praça quadrada, junto ao chafariz e esperou, observando os rostos alheios à procura de uma expressão nos seus olhares. Nada... não encontrava nos olhos que se cruzavam com os seus mais que esquecimento e apatia. Todos percorriam assim as avenidas e a praça apenas caminhando pela indiferença. Subitamente ouviu-se o som de uma travagem, um estrondo, um embate, numa avenida perpendicular à Rua do Devir... suspensão... como que um despertar e todas as pessoas agora se remexiam dentro dos seus próprios corpos, incomodadas pela memória celular ao relembrar alguma coisa bem escondida, e que as fazia finalmente sentir... como uma droga. Muitos dirigiram-se para lá, em tumulto, aos tropelões... há coisas que só acontecem aos outros... e assim permaneciam na ignorância após aquela dose segura de adrenalina. Caminhou lentamente, satisfazendo a curiosidade daquele jogo interior que lhe dizia que apostava que aquele acidente teria ocorrido com uma daquelas caras que mesmo agora haviam partilhado consigo a mesma curva do chafariz, a mesma curva temporal, como uma janela aberta a todas as possibilidades, potencialmente escolhidas em consciência. Aproximou-se e viu pelas reentrâncias do movimento dos corpos em excitação pela dor alheia, que era de facto uma das três mulheres que anteriormente falavam alegremente sentadas ao seu lado, no chafariz. Parecia não ser muito grave, mas haveria de lhe dar uns bons meses de descanso. Afastou-se em passos lentos, absorta na estranheza da ideia de que nada acontece que não seja por escolha própria... estranhos prazeres a que nos entregamos para que possamos por momentos parar, sentir, olhar e ver, apenas, deixando fluir a vida e a verdade do universo... afastou-se, cada vez mais, enquanto lentamente se espalhava pelo seu corpo o desconforto asténico, febril, e a urgência de se enroscar e dormir. À sua passagem os pombos, num adejar cinzento e empoeirado, afastavam-se inseguros para logo à frente retomarem os seus rituais de acasalamento... e a roda do mundo perpetuava a girar.